domingo, 20 de setembro de 2009

sábado, 19 de setembro de 2009

Precisão

O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

19


Mudança

Sente-se em outra cadeira, no outro lado da mesa. Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair, procure andar pelo outro lado da rua. Depois, mude de caminho, ande
por outras ruas, calmamente, observando com atenção os lugares por onde você
passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas. Dê os seus sapatos velhos. Procure
andar descalço alguns dias. Tire uma tarde inteira para passear livremente na
praia, ou no parque, e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas e portas com a mão esquerda. Durma no outro lado da
cama... Depois, procure dormir em outras camas. Assista a outros programas de
tv, compre outros jornais... leia outros livros.
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida. Ame a novidade. Durma mais tarde. Durma
mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos, escolha comidas diferentes, novos temperos, novas cores,
novas delícias.
Tente o novo todo dia. O novo lado, o novo método, o novo sabor, o novo jeito, o
novo prazer, o novo amor.
A nova vida. Tente. Busque novos amigos. Tente novos amores. Faça novas
relações.
Almoce em outros locais, vá a outros restaurantes, tome outro tipo de bebida,
compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo, jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado... outra marca de sabonete, outro creme dental... Tome
banho em novos horários.
Use canetas de outras cores. Vá passear em outros lugares.
Ame muito, cada vez mais, de modos diferentes.
Troque de bolsa, de carteira, de malas, troque de carro, compre novos óculos,
escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios, quebre delicadamente esses horrorosos despertadores.
Abra conta em outro banco. Vá a outros cinemas, outros cabeleireiros, outros
teatros, visite novos museus.
Mude.
Lembre-se de que a Vida é uma só. E pense seriamente em arrumar um outro
emprego, uma nova ocupação, um trabalho mais light, mais prazeroso, mais digno,
mais humano.
Se você não encontrar razões para ser livre, invente-as. Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem despretensiosa, longa, se possível sem
destino. Experimente coisas novas. Troque novamente. Mude, de novo. Experimente
outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já
conhecidas, mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança, o movimento, o dinamismo, a energia. Só o que
está morto não muda !
Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não
vale a pena !!!"

Não te amo mais...

Não te amo mais.
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis.
Tenho certeza que
Nada foi em vão.
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer jamais que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
EU TE AMO!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais...

Não posso perder um minuto..

Não posso perder um minuto do tempo
que faz minha vida.
Amar os outros é a única salvação
individual que conheço :
ninguém estará perdido se der amor e
às vezes receber amor em troca.

Sou o que quero ser...

Sou o que quero ser, porque possuo apenas uma vida e nela
só tenho uma chance de fazer o que quero.
Tenho felicidade o bastante para fazê-la doce
dificuldades para fazê-la forte,
Tristeza para fazê-la humana e
esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não tem as melhores coisas
elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos

Tudo tem que ser...

Tudo tem que ser bem de leve para eu não me assustar e não assustar os
que amo.
Pedem-me pouco, pedem-me quase nada.
O terrível é que eu tenho muito para dar
e tenho que engolir esse muito e ainda
por cima dizer com delicadeza : obrigada
por receberem de mim um pouquinho de mim.

Fico com medo...

Fico com medo. Mas o coração bate.
O amor inexplicável faz o coração
bater mais depressa.
A garantia única é que eu nasci.
Tu és uma forma de ser eu,
e eu uma forma de te ser:
Eis os limites de minha possibilidade.

Sou como vc me vê...

Sou como vc me vê
Posso ser leve como uma brisa,
ou forte como uma ventania,
depende de quando, e como vc me vê passar!

Por não estarem distraídos

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a
garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca
entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta
sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam
e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede
deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a
sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o
brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles
admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se
transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande
dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não
via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto
ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais
erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham
prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de
súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar
um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se
estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a
carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou
os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Escrever, Humildade, Técnica

Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto
de... de quê? procure um modo de falar que me leve mais depressa ao
entendimento. Esse modo, esse "estilo" (!), já foi chamado de várias coisas, mas
não do que realmente e apenas é: uma procura humilde. Nunca tive um só problema
de expressão, meu problema é muito mais grave: é o de concepção. Quando falo em
"humildade" refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a poder ser
alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da plena consciência de se ser
realmente incapaz. E refiro-me à humildade como técnica. Virgem Maria, até eu
mesma me assustei com minha falta de pudor; mas é que não é. Humildade com té
cnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da coisa é que ela não
escapa totalmente. Descobri este tipo de humildade, o que não deixa de ser uma
forma engraçada de orgulho. Orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho
é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice. Só que orgulho tem a
enorme desvantagem de ser um erro grave, com todo o atraso que erro dá à vida,
faz perder muito tempo.

Precisão

O que me tranqüiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de
milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma
grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é
tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido
secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.

Sobre a escrita

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.
Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu
meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam
dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do
som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais
palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.
Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos
pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um
extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo - é por esconderem
outras palavras.
Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso
dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não
deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece
que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu
encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro
o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho
Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem
de dizer a verdade.

Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da
música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e
escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino
dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às
vezes.
Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem
moeda e que fosse e transmitisse tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais
profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com
menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu
tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento
que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.
Simplesmente as palavras do homem.

Dá-me a Tua Mão(Frases e Pensamentos de Clarice Lispector)

Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi
a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número
um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha
sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos
existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um
intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da
matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo é aquilo que ovimos e chamamos de silêncio.

Teu Segredo(Frases e Pensamentos de Clarice Lispector)

Flores envenenadas na jarra. Roxas azuis, encarnadas, atapetam o ar. Que riqueza
de hospital. Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então o teu segredo.
Teu segredo é tão parecido contigo que nada me revela além do que já sei. E sei
tão pouco como se o teu enigma fosse eu. Assim como tu és o meu.

Meu Deus, me dê a coragem(Frases e Pensamentos de Clarice Lispector)

Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma
plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em
êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como
resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de
Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a
solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça
com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o
nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus
braços meu pecado de pensar.

O Segredo(Frases e Pensamentos de Clarice Lispector)

Há uma palavra que pertence a um reino que me deixa muda de horror. Não espantes
o nosso mundo, não empurres com a palavra incauta o nosso barco para sempre ao
mar. Temo que depois da palavra tocada fiquemos puros demais. Que faríamos de
nossa vida pura? Deixa o céu à esperança apenas, com os dedos trêmulos cerro os
teus lábios, não a digas. Há tanto tempo eu de medo a escondo que esqueci que a
desconheço, e dela fiz o meu segredo mortal.

Atenção ao Sábado

Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas
ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é a rosa
da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o rosto
inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no
outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas.
No sábado é que as formigas subiam pela pedra.
Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia
de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho.
De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento sábado era
a rosa de nossa semana.
Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?
No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço
metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento
espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde.
Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais.
Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.
Domingo de manhã também é a rosa da semana.
Não é propriamente rosa que eu quero dizer.

O nascimento do prazer

O prazer nascendo dói tanto no peito que se prefere sentir a habituada dor ao
insólito prazer. A alegria verdadeira não tem explicação possível, não tem a
possibilidade de ser compreendida - e se parece com o início de uma perdição
irrecuperável. Esse fundir-se total é insuportavelmente bom - como se a morte
fosse o nosso bem maior e final, só que não é a morte, é a vida incomensurável
que chega a se parecer com a grandeza da morte. Deve-se deixar inundar pela
alegria aos poucos - pois é a vida nascendo. E quem não tiver força, que antes
cubra cada nervo com uma película protetora, com uma película de morte para
poder tolerar a vida. Essa película pode consistir em qualquer ato formal
protetor, em qualquer silêncio ou em várias palavras sem sentido. Pois o prazer
não é de se brincar com ele. Ele é nós.

...ser além do que se é...

...há impossibilidade de ser além do que se é -
no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio,
sou mais do que eu, quase normalmente -
tenho um corpo e tudo que eu fizer é continuação
de meu começo......
a única verdade é que vivo.
Sinceramente, eu vivo.
Quem sou?
Bem, isso já é demais....

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Uma galinha

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

parecia calma. desde sábado encolhera-se num cante da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou o telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão de rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais intima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como. o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou. Entre gritos e penas, ela foi presa. em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.

Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

– Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

– Eu também! jurou a menina com ardor.

A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a da apatia e a do sobressalto

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho – era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.



Clarice Lispector,
Laços de família. Rio, Francisco Alves, 2ª ed., 1961.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

PRECIOSIDADE

De manhã cedo era sempre a mesma coisa renovada: acordar. O que era vagaroso, desdobrado, vasto. Vastamente ela abria os olhos.

Tinha quinze anos e não era bonita. Mas por dentro da magreza, a vastidão quase majestosa em que se movia como dentro de uma meditação. E dentro da nebulosidade algo precioso. Que não se espreguiçava, não se comprometia, não se contaminava. Que era intenso com uma jóia. Ela.

Acordava antes de todos, pois para ir à escola teria de pegar um ônibus e um bonde, o que lhe tomaria uma hora. De devaneio agudo com um crime. O vento da manhã violentando a janela e o rosto até que os lábios ficavam duros, gelados. Então ela sorria. Como se sorrir fosse em si um objetivo. Tudo isso aconteceria se tivesse a sorte de "ninguém olhar para ela".

Quando de madrugada se levantava - passado o instante de vastidão em que se desenrolava toda - vestia-se correndo, mentia para si mesmo que não havia tempo de tomar banho e a família adormecida jamais adivinhara quãos poucos ela tomava. Sob a luz acesa da sala de jantar, engolia o café que a empregada, se começando no escuro da cozinha, requentara. Mal tocava no pão que a manteiga não amolecia. Com a boca fresca de jejum, os livros embaixo do braço, abria enfim a porta, transpunha a mornidão insossa da casa, galgando-se para a gélida fruição da manhã. Então já não se apressava mais.

Tinha que atravessar a longa rua deserta até alcançar a avenida, do fim da qual um ônibus emergiria cambaleando dentro da névoa, com as luzes da noite ainda acesas no farol. Ao vento de junho, o ato misterioso, autoritário e perfeito era erguer o braço - e já de longe o ônibus trêmulo começava a se deformar obedecendo à arrogância de seu corpo, representante de um poder supremo, de longe o ônibus começava a tornar-se incerto e vagaroso, vagaroso e avançando, cada vez mais concreto - até estacar no seu rosto em fumaça e calor, em calor e fumaça. Então subia, séria como uma missionária, por causa dos operários no ônibus que "poderiam dizer-lhe alguma coisa". Aqueles homens que não eram mais rapazes. Mas também de rapazes tinha medo, medo também de meninos. Medo que lhe "dissessem alguma coisa", que a olhassem muito. Na gravidade da boca fechada havia a grande súplica: respeitassem-na. Mais que isso. Como se tivesse prestado voto, era obrigada a ser venerada, e, enquanto por dentro o coração batia de medo, também ela se venerava, ela a depositária de um ritmo. Se a olhavam ficava rígida e dolorosa. O que a poupava é que os homens não a viam. Embora alguma coisa nela, a medida que dezesseis anos se aproximava emf umaça e calor, alguma coisa estivesse intensamente surpreendida - e isso surpreendesse alguns homens. Como se alguém lhes tivesse tocado no ombro. Uma sombra talvez. No chão a enorme sombra de moça sem homem, cristalizável elemento incerto que fazia parte da monótona geometria das grandes cerimônias públicas. Como se lhes tivessem tocado no ombro. Eles olhavam e não a viam. Ela fazia mais sombra do que existia.

No ônibus os operários eram silenciosos com a marmita na mão, o sono ainda no rosto. Ela sentia vergonha de não confiar neles, que eram cansados. Mas até que os esquecesse, o desconforto. É que eles "sabiam". E como também ela sabia, então o desconforto. Todos sabiam o mesmo. Também seu pai sabia. Um velho pedindo esmola sabia. A riqueza distibuída, e o silêncio.

Depois, com o andar de soldado, atravessava - incólume - o Largo da Lapa, onde era dia. A essa algura a batalha estava quase ganha. Escolhia no bonde um banco, se possível vazio ou, se tivesse sorte, sentava-se ao lado de alguma asseguradora mulher com uma trouxa de roupa no colo, por exemplo - e era a primeira trégua. ainda teria de enfrentar na escola o longo corredor onde os colegas estariam de pé conversando, e ond eos tacos de seus sapatos faziam um ruído que as pernas tensas não podiam conter como se ela quisesse inutilmente fazer parar de bater um coração, sapatos com dança própria. Fazia-se um vago silêncio entre os rapazes, talvez sentissem, sob o seu disfarce, que ela era uma das devotas. Passava entre as alas dos colegas crescendo, e eles não sabiam o que pensar nem como comentá-la. Era feio o ruído de seus sapatos. Rompia o próprio segredo com tacos de madeira. Se o corredos demorasse um pouco mais, ela esqueceria seu destino e correria com as mão tapando os ouvidos. Só tinha sapatos duráveis. Como se fossem ainda os mesmos que em solenidade lhe haviam calçado quando nascera. Atravessava o corredor interminável com a um silêncio de trincheira, e no seu rosto havia algo tão feroz - e soberbo também, por causa de sua sombra - que ninguém lhe dizia nada. Proibitiva, ela os impedia de pensar.

Até que, enfim, a classe de aula. Onde de repente tudo se tornava sem importância e mais rápido e leve, onde seu rosto tinha algumas sardas, os cabelos caíam nos olhos, e onde ela tratada como um rapaz. Onde era inteligente. A astuciosa profissão. Parecia ter estudado em casa. Sua curiosidade informava-lhe mais que respostas. Adivinhava, sentindo na boca o gosto cítrico das dores heróicas, adivinhava a repulsão fascinada que sua cabeça pensante criava nos colegas, que, de novo, não sabiam como comentá-la. Cada vez mais a grande fingia se tornava inteligente. Aprendera a pensar. O sacrifício necessário: assim "ninguém tinha coragem".

Às vezes, enquanto o professor falava, ela, intensa, nebulosa, fazia riscos simétricos n0 caderno. Se um risco, que tinha que ser ao mesmo tempo forte e delicado, saía fora do círculo imaginário em que deveria caber, tudo desabaria: ela se concentrava ausente, guiada pela avidez do ideal. Às vezes em vez de riscos, desenhava estrelas, estrelas, estrelas, tantas e tão altas que desse trabalho anunciador saía exausta, erguendo uma cabeça mal acordada.

A volta para casa era tão cheia de fome que a impaciência e o ódio roíam seu coração. Na volta parecia outra cidade: no Largo da Lapa centenas de pessoas reverberadas pela fome pareciam ter esquecido e, se lhes lembrassem, arreganhariam dentes. O sol delineava cada homem com carvão preto. Sua própria sombra era uma estaca negra. Nesta hora em que o cuidado tinha que ser maior, ela era protegida pela espécie de feiúra que a fome acentuava, seus traços escurecidos pela adrenalina que escurecia a carne dos animais de caça. Na casa vazia, toda a família na repartição, gritava com a empregada que nem sequer lhe respondia. Comia como um centauro. Acara perto do prato, os cabelos quase na comida.

-Magrinha, mas como devora, dizia a empregada esperta.

-Pro diabo, gritava-lhe sombria

Na casa vazia, sozinha com a empregada, já não andava como um soldado, já não precisava tomar cuidado. Mas sentia falta da batalha das ruas. Melancolia da liberdade, com o horizonte ainda tão longe. Dera-se ao horizonte. Mas a nostalgia do presente. O aprendizado da paciência, o juramento da espera. Do qual talvez não soubesse jamais se livrar. A tarde transformando-se em interminável e, até todos voltarem para o jantar e ela poder se tornar com alívio uma filha, era o calor, o livro aberto e depois fechado, uma intuição, o calor: sentava-se com a cabeça entre as mãos, desesperada. Quando tinha dez anos, relembrou, um menino que a amava jogara-lhe um rato morto. Porcaria! berrara branca com a ofensa. Fora uma experiência. Jamais contara a niguém. Com a cabeça entre as mãos, sentada. Dizia-se quinze vezes: sou vigorosa, sou vigorosa, sou vigorosa - depois percebia que apenas prestara atenção à contagem. Suprindo com a quantidade, disse mais uma vez: sou vigorosa, dezesseis. E já não estava à mercê de ninguém. Desesperada porque, vigorosa, livre, não estava mais à mercê. Perdera a fé. Foi conversar com a empregada, antiga sacerdotisa. Elas se reconheciam. As duas descalças, de pé na cozinha, a fumaça do fogão. Perdera a fé, mas, à beira da graça, procurava na empregada apenas o que esta já perdera, não o que a ganhara. Fazia-se pois distraída e, conversando, evitava a conversa. "Ela imagina que na minha idade devo saber mais do que sei e é capaz de me ensinar alguma coisa", pensou, a cabeça entre as mãos, defendendo a ignorância como a um corpo. Faltavam-lhe elementos, mas não os queria de quem já os esquecera. A grande espera fazia parte. Dentro da vastidão, maquinando.

Tudo isso, sim. Longo, cansado, a exasperação. Mas na madrugada seguinte, como uma avestruz lenta se abre, ela acordava. Acordou no mesmo mistério intacto, abrindo os olhos ela era a princesa do mistério intacto.

Como se a fábrica já tivesse apitado, vestiu-se correndo, bebeu de um sorvo o café. Abriu a porta de casa.

E então já não apressou-se mais. A grande imolação das ruas. Sonsa, atenta, mulher de apache. Parte rude ritmo de um ritual.

Era uma manhã ainda mais fria e escura que as outras, ela estremeceu no suéter. Abranca nebulosidade deixava o fim da rua invisível. Tudo estava algodoado, não se ouviu sequer o ruído de algum ônibus que passasse pela avenida. foi andando para o imprevisível da rua. As casas dormiam nas portas fechadas. Os jardins endurecidos de frio. No ar escuro, mais que no céu, no meio da rua uma estrela. UMa grande estrela de gelo que não voltara ainda, incerta no ar, úmida, informe. Surpreendida no seu atraso, arredondava-se na hesitação. Ela olhou a estrela próxima. Caminhava sozinha na cidade bombardeada.

Não, ela não estava sozinha. Com os olhos franzidos pela incredulidade, no fim longínquo de sua rua, de dentro do vapor, viu dois homens. Dois rapazes vindo. Olhou ao redor como se pudesse ter errado de rua ou de cidade. Mas errara os minutos: saíra de casa antes que a estrela e dois homens tivessem tempo de sumir. Seu coração se espantou.

O primeiro impulso, diante de seu erro, foi o de refazer para trás os passos dados e entrar em casa até que eles passassem: "Eles vão olhar pra mim, eu si, não há mais ninguém para eles olharem e eles vão me olhar muito!" Mas como voltar e fugir, se nascera para a dificuldade. Se toda a sua lenta preparação tinha o destino ignorado a que ela, por culto, tinha que aderir. Como recuar, e depois nunca mais esquecer a vergonha de ter esperado em miséria atrás de uma porta?

E mesmo talvez não houvesse perigo. Eles não teriam coragem de dizer nada porque ela passaria com o andar duro, de boca fechada, no seu ritmo espanhol.

De pernas heróicas, continuou a andar. Cada vez que se aproximava, eles também se aproximavam - então todos se aproximava, a rua ficou cada vez um pouco mais curta. Os sapatos dos dois rapazes misturavam-se ao ruído de seus próprios sapatos, era ruim ouvir. Era insistente ouvir. Os sapatos eram ocos ou a calçada era oca. A pedra do chão avisava. Tudo era eco e ela ouvia, sem poder impedir, o silêncio do cerco comunicando-se pelas ruas do bairro, e via, sem poder impedir, que as portar mais fechadas haviam ficado. Mesmo a estrela retirara-se. Na nova palidez da escuridão, a rua entregue aos três. Ela andava, ouvia os homens, já que não poderia olhá-los e já que precisava sabê-los. Ela os ouvia e surpreendia-se com a própria coragem em continuar. Mas não era coragem. Era o dom. E a grande vocação para um destino. Ela avançava, sofrendo em obedecer. Se conseguisse pensar em outra coisa, não ouviria os sapatos. Nem o que eles pudessem dizer. Nem o silêncio com que se cruzariam.

Com brusca rigidez olhou-os. Quando menos esperava, traindo o voto de segredo, viu-os rápida. Eles sorriam? Não, estavam sérios.

Não deveria ter visto. Porque, vendo, ela por um instante arriscava-se a tornar-se individual, e também eles. Era do que parecia ter sido avisada: enquanto executasse um mundo clássico, enquanto fosse impessoal, seria filha dos deuses, e assistida pelo que tem que ser feito. Mas, tendo viso o que olhos, ao vere, diminuem, arriscara-se a ser um ela-mesma que a tradição não amparava. Por um instante hesitou toda, perdida de um rumo. Mas era tarde demais para recuar. Só que não seria tarde demais se correse. Mas correr seria como errar todos os passos, e perder o ritmo que ainda a sustentava, o ritmo que era o seu único talismã, o que lhe fôra entregue à orla do mundo onde era pra ser sozinha - à orla do mundo onde se tinham apagado todas as lembranças, e como incompreensível lembrete restara o cego talismão, ritmo que era de seu destino copiar, executando-o para a consumação do mundo. Não a própria. Se ela corresse a ordem se alteraria. E nunca lhe seria perdoado o pior: a pressa. E mesmo quando se foge correm atrás, são coisas que se sabem.

Rígida, catequista, sem alterar por ums egundo a lentidão com que avançava, ela avançava. "Eles vão olhar pra mim, eu sei!" Mas tentava por instinto de uma vida anterior, não lhes transmitir susto. Adivinhava o que o medo desencadeia. Ia ser rápido, sem dor. Só por uma fração de segundos se cruzariam, rápido, instantâneo, por causa da vantagem a seu favor dela estar em movimento e deles virem em movimento contrário, o que faria com que o instante se reduzisse ao essencial necessário - à queda do primeiro dos sete mistérios que tão secretos eram que deles ficara apenas uma sabedoria: o número sete. Fazei com que eles não digam nada, fazei com que eles só pensem, pensar eu deixo. Ia ser rápido, e um segundo depois da transposição ela diria maravilhada, galgando-se para outras e outras ruas: quase não doeu. Mas o que se seguiu não teve explicação.

O que se seguiu foram quatro mãos difíceis, foram quatro mãos que não sabiam o que queriam, quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada. Eles, cujo papel predeterminado era apenas o de passar junto do escuro de seu medo, e então o primeiro dos sete mistérios cairia; eles que representariam apenas o horizonte de um só passo aproximado, eles não compreenderam a funçào que tinham e, com a individualidade dos que têm medo, haviam atacado. Foi menos de uma fração de segundo na rua tranquila. Numa fração de segundo a tocaram com se a eles coubessem todos os sete mistérios. Que ela conservou todos, e mais larva se tornou, e mais sete anos de atraso.

Ela não os olhou porque sua cara ficou voltada com serenidade para o nada.

Mas pela pressa com que a magoaram, soube que eles tinham mais medo do que ela. Tão assustados que já não estavam mais ali. Corriam. "Tinham medo que ela gritasse e as portas das casas uma por uma se abrissem", raciocinou, eles não sabiam que não se grita.

Ficou de pé, ouvindo com tranqüila loucura os sapatos deles em fuga. A calçada ou era oca, ou os sapatos eram ocos ou ela própria era oca. No oco dos sapatos deles ouvia atenta o medo dos dois. O som batia nítido nas lajes como se batessem à porta sem parar e ela esperasse que desistissem. Tão nítido na nudez da pedra que o sapateado não parecia distanciar-se: era ali a seus pés, com um sapateado de vitória. De pé, ela não tinha por onde se sustentar senão pelos ouvidos.

A sonoridade não esmorecia, o afastamento era-lhe transmitido por um apressado cada vez mais preciso de tacos. Os tacos não ecoavam mais na pedra, ecoavam no ar como castanholas cada vez mais delicadas. Depois percebeu que há muito não ouvia nenhum som.

E, trazidos de volta pela brisa, o silêncio e uma rua vazia.

Até esse instante mantivera-se quieta, de pé no meio da calçada. Então, como se houvesse várias etapas da mesma imobilidade, ficou parada. Daí a pouco suspirou. E em nova etapa manteve-se parada. Depois mexeu a cabeça, e então ficou mais profundamente parada.

Depois recuou devagar até um muro, corcunda, bem devagar, como se tivesse um braço quebrado, até que se encostou toda no muro, onde ficou inscrita. E então manteve-se parada. Não se mover é o que importa, pensou de longe, não se mover. Depois de um tempo, provavelmente ter-se-ia dito assim: agora mova um pouco as pernas mas bem devagar. Porque, bem devagar, moveu as pernas. Depois do que, suspirou e ficou quieta olhando, Ainda estava escuro.

Depois amanheceu.

Devagar reuniu os livros espalhados pelo chão. Mais adiante estava o caderno aberto.Quando se abaixou para recolhê-lo, viu a letra redonda e graúda que até esta manhã fôra sua.

Então saiu. Sem saber com que enchera o tempo, senão com passos e passos, chegou à escola com mais de duas horas de atraso. Como não tinha pensado em nada, não sabia que o tempo decorrera. Pela presença do professor de Latim constatou com uma surpresa polida que na classe já haviam começado a terceira hora.

-Que foi que te aconteceu? sussurrou a menina da carteiraa ao lado

-Por quê?

-Você está branca. Está sentindo alguma coisa?

-Não, disse tão claro que vários colegas olharam-na. Levaantou-se e disse bem alto:

-Dá licença!

Foi para o lavatório. Onde, diante do grande silêncio dos ladrilhos, gritou aguda, supersônica: Estou sozinha no mundo! Nunca ninguém vai me ajudar, nunca ninguém vai me amar! Estou sozinha no mundo!

Estava ali perdendo também a terceira aula, no longo banco do lavatório, em frente a várias pias. "Não faz mal, depois copio os pontos, peço emprestado os cadernos para copiar em casa - estou sozinha no mundo!", interrompeu-se batendo várias vezes a mão fechada no banco. O ruído dos quatro sapatos de repende começou como uma chuva miúda e rápida. Ruído cego, nada se refletiu nos ladrilhos brilhantes. Só a nitidez de cada sapato que não se emaranhou nenhuma vez com outro sapato. Como nozes caindo. Era só esperar como se espera que parem de bater à porta. Então pararam.

Quando foi molhar os cabelos diante do espelho, ela era tão feia.

Ela possuía tão pouco, e eles haviam tocado.

Ela era tão feia e preciosa.

Estava pálida, os traços afinados. As mãos, umedecendo os cabelos, sujas de tinta ainda do dia anterior. "Preciso cuidar mais de mim", pensou. Não sabia como. A verdade é que cada vez sabia menos como. A expressão do nariz era a de um focinho apontando na cerca.

Voltou ao banco e ficou quieta, com um focinho. "Uma pessoa não é nada." "Não", retrucou-se em mole protesto, "não diga isso", pensou com bondade e melancolia. "Uma pessoa é alguma coisa", disse por gentileza.

Mas no jantar a vida tomou um senso imediato e histérico:

-Preciso de sapatos novos! os meus fazem muito barulho, uuma mulher não pode andar com salto de madeira, chama muita atenção! Ninguém me dá nada! Ninguém me dá nada! - e estava tão frenética e estertorada que ninguém teve coragem de lhe dizer que não os ganharia. Só disseram:

-Você não é uma mulher e todo salto é de madeira.

Até que, assim como uma pessoa engorda, ela deixou, sem saber por que processo, de ser preciosa. Há uma obscura lei que faz com que se proteja o ovo até que nasça o pinto, pássaro de fogo.

E ela ganhou os sapatos novos.

AMOR

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha enfim espaçosa, o fogão enquiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar a enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um hoem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes inisíveis, que viviam como quem trabalha - com peristência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viram jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada - o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenidada para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão - Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava - o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de trico era áspera entre os dedos, não íntima mas como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pode localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou - voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário - era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega - era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumadas... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos, enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve mêdo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria - e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito - o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava - que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado - amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal - o cego ou o belo Jardim Botânico? - agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira, com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo - e que nome se deveria dar à sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar o leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego prefereria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros.

Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana predeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruto que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com seu marido diante do café derramado.

- O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

- Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espio-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

- Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

- Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteva-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Medo da Eternidade

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.

- Não acaba nunca, e pronto.

- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.

- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

- Acabou-se o docinho. E agora?

- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

A Lucidez Perigosa

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.

Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade -
essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

domingo, 6 de setembro de 2009

Nossa Truculência

Quando penso na alegria voraz
com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência.
Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,
tanto gosto delas vivas
mexendo o pescoço feio
e procurando minhocas.
Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca.
Nós somos canibais,
é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos.
E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue.


Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.

sábado, 5 de setembro de 2009

Tentação

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva. Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos. Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo. Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro. A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam. Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos. Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos. No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam. Mas ambos eram comprometidos. Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada. A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina. Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás. ("Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Mas há a Vida

Mas
há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A Perfeição

O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

Dá-me a Tua Mão

Dá-me
a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
– nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.